Posfácio de Jurassic Park, por Marcelo Hessel

Curtir e compartilhar esse post:
facebook:
twitter:
google plus:
pinterest: pinterest

livro jurassic park aleph, michael crichton, posfácio marcelo hessel, omelete, pipoca musical, raquel moritz

Um díptico de avessos

Michael Crichton começou a esboçar a ideia para Jurassic Park em 1983, ao escrever um roteiro sobre um estudante de graduação que conseguia clonar um pterodáctilo a partir do DNA extraído de um fóssil. Depois de decidir ambientar a trama em um parque temático, transformou o roteiro em romance, contado do ponto de vista de uma criança, um menino presente no parque quando os dinossauros fogem ao controle.

Em suas notas da época da publicação de Jurassic Park, em novembro de 1990, Crichton conta que todas as pessoas de sua confiança que leram o livro – cinco ou seis pessoas a quem ele encaminhava seus esboços – detestaram o resultado, uma unanimidade que ele diz raramente experimentar. Ninguém sabia precisar o que gerava a antipatia, que se repetia a cada nova versão do texto. Quando um dos leitores disse que detestara o livro porque esperava uma história sob a perspectiva de um adulto, com quem pudesse se identificar, Crichton transformou seu protagonista. Com um olhar adulto e relegando crianças a coadjuvantes, Jurassic Park magicamente se tornou um sucesso.

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

Toda essa história seria apenas mais uma entre tantos pequenos casos inglórios de como best-sellers são escritos e reescritos na base da tentativa e do erro, não fosse a figura de Steven Spielberg. O diretor de cinema tomou contato com Jurassic Park em 1989, quando discutia com Crichton um roteiro que se tornaria depois a premissa da série televisiva ER – Plantão Médico. Na mão de Spielberg – cineasta conhecido por um senso de encantamento e assombro que dialoga em seus filmes com os medos e as fantasias do imaginário infantil –, Jurassic Park voltou a assumir, presumivelmente, seu ponto de vista de origem.

Nessa oposição, o livro de 1990 e o filme de 1993 formam um díptico que ajuda a entender as particularidades das obras de Crichton e de Spielberg. Afinal, o que torna o filme, embalado pelos refrões triunfantes da trilha de John Williams, um conto tão formidável de deslumbre infantil com o perigo? E, ao mesmo tempo, o que faz do romance um exemplar tão eficiente do chamado cautionary tale, os contos admonitórios, em seu retrato sem ilusões do mundo dos adultos e, especificamente, do mundo dos homens?

A definição de filme-família

livro jurassic park aleph, michael crichton, posfácio marcelo hessel, omelete, pipoca musical, raquel moritz

Inverter a lógica e partir do filme nesse comparativo faz sentido porque, enquanto o romance se almeja expansivo, tanto no discurso moral que tenta dar conta de todo o horror da bioengenharia irresponsável, quanto na narrativa que envolve esferas sociais, acadêmicas e científicas distintas, Spielberg exercita a contenção. Seu filme se interioriza a cada instante, até se tornar apenas a história (bastante esperançosa, aliás) de como um homem, o paleontólogo Alan Grant, vivido pelo ator Sam Neill, enfim aceita a ordem natural das coisas e começa a nutrir a ideia de ser pai.

Um filme nuclear, afinal, para tratar da preservação dessa noção de um núcleo familiar tradicional, do qual a paleobotânica Ellie Sattler (vivida por Laura Dern) faz o papel velado de mãe para as duas crianças, Tim e Lex – todos eles personagens presentes no romance, embora com personalidades ocasionalmente diferentes. No filme, a estratégia da contenção começa pelas ambientações. As cenas fora da ilha – o resort onde Dennis Nedry (Wayne Knight) encontra o comprador, a área de escavação, a caverna do âmbar – são como espaços de exceção, “não lugares” para gente em trânsito, que não se habitam de fato. A ideia é se concentrar na Ilha Nublar como único hábitat, como se estivéssemos dentro de um globo de neve, onde tudo há de se resolver.

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

Elemento importante no livro, a questão das embarcações, da migração e do risco de acesso dos velocirraptores ao continente é deixada de lado no filme em nome da preservação desse ambiente fechado – o que traz consigo o espírito, caro aos filmes de Spielberg, de uma ameaça controlada e, por consequência, inofensiva. Que Crichton tivesse optado logo em seus primeiros rascunhos por um parque temático como cenário (ele justifica a escolha dizendo que a engenharia genética é dispendiosa e ninguém se inclinaria a clonar dinossauros se não fosse pelo desejo de entreter) resulta em uma espécie de premonição: a ideia de fuga segura dos parques de diversão encontra em Spielberg, em um filme acima de tudo de terrores fora de contexto, seu mais perfeito apologista.

Não é por acaso que, por anos, uma das atrações mais populares do parque temático do estúdio Universal fosse o tubarão do filme de 1975 de Spielberg. Seu Jurassic Park inclusive encontra, mais do que no livro, um Walt Disney reencarnado na figura do bilionário CEO da InGen, John Hammond, interpretado pelo ator e diretor Richard Attenborough. Duas passagens inexistentes no livro e escritas para o filme demarcam esse paralelo: quando Hammond explica a seus convidados o processo de clonagem usando uma mistura de live-action com personagens animados, bem à moda do criador de Mickey Mouse, e, mais tarde, quando a câmera passa pela lojinha de suvenires e mostra roupas com a marca do parque, outro traço inconfundível do conceito de Disneylândia.

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

“Traga meus netos de volta”, pede o bilionário no auge do caos teorizado pelo matemático Ian Malcolm. Enquanto o John Hammond do livro tem a convicção cega de um dr. Moreau – o cientista que brinca de Deus no clássico conto admonitório A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, antepassado legítimo de Jurassic Park –, o velho do filme nunca deixa de exercer, mesmo no desespero, seu papel bonachão de guia de excursão infantil. Quando enfim esse pequeno núcleo disfuncional deixa a Ilha Nublar no filme – com o Ian Malcolm do ator Jeff Goldblum já devidamente removido de seu projeto galanteador e realocado na função do tio ovelha negra da família –, a imagem de um pássaro voando ao lado do helicóptero traça uma relação bem leve com o desfecho do livro. Há uma transitoriedade em jogo ali, sim, quando a redoma se abre para o mundo lá fora, mas ela envolve não os dinossauros, a ética científica ou o futuro do capitalismo, mas as pessoas, seus valores e suas relações.

O mundo dos adultos

livro jurassic park aleph, michael crichton, posfácio marcelo hessel, omelete, pipoca musical, raquel moritz

Embora o roteiro do filme tenha sido escrito por Michael Crichton em parceria com David Koepp, e boa parte desse esforço de contenção possa ser creditado ao autor (Crichton é conhecido por seus romances de curta duração, “para ler em um voo em substituição a um filme”, ele dizia, e Jurassic Park foi o mais extenso de seus livros até o lançamento de Assédio Sexual em 1994), a diferença de tom é notável entre a adaptação ao cinema e o material original. A começar pelo recurso da “ficção como fato”, a que o escritor já havia recorrido em O Enigma de Andrômeda (1969) e Devoradores de Mortos (1976). Enquanto Spielberg e John Williams engrandecem artificialmente a experiência científica do descobrimento com o ponto de vista humildemente apequenado do homem comum, Crichton traz o leitor, logo de cara, para a esfera dos dados e dos números, citados como lastro na introdução que apresenta a InGen para conferir a Jurassic Park um aparente caráter documental. É o primeiro indício da “narrativa de adultos para adultos” que seus leitores-testes reivindicavam, ainda que a ficção como fato possa ser, frequentemente, uma manobra ficcionista bastante pueril.

Porém, parece haver nesse início (e depois no preâmbulo que busca cientistas e envolve universidades, países e especialistas na criação de um painel intrincado) uma preocupação legítima em localizar a narrativa de technothriller em uma realidade muito palpável de vale-tudo corporativo do fim dos anos 1980 – como se Jurassic Park só fosse capaz de trazer a discussão ética sobre biotecnologia para o mundo real, com efeito, se abraçasse sem questionar esse recurso da “ficção como fato”. No fim, é o início que dá o tom do livro, blocado em capítulos divididos por iterações, de ponta a ponta uma disposição para a catalogação “desapegada”, documental.

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

Se Crichton não tem, em si, o mesmo espírito para a fabulação de Spielberg, o escritor compensa com um terror do factual, um terror que possamos identificar, ao aproximar o comportamento de criaturas impensáveis como os dinossauros ao de predadores e aves de rapina corriqueiros de hoje. E é com um certo prazer sádico que o escritor narra detalhadamente cenas sobre lagartos que comem rostos de bebês, sobre o gosto e o calor do sangue, o tipo de ocorrência que os filmes de Jurassic Park sempre deixaram no âmbito das histórias de horror para crianças (Grant ensinando uma lição ao menino no começo do filme), diluído em momentos de alívio cômico ou sugerido no extracampo – atrás de um tronco de árvore, no alvoroço da mata ou fora do campo de visão de eventuais sobreviventes.

“A descoberta é sempre um estupro do mundo natural”, diz Ian Malcolm no romance, em uma fala que não caberia no filme mas que é bastante representativa do tipo de confronto e de ordem social que Crichton procura estabelecer. Se a rivalidade é regra tanto no mundo natural quanto na formação do homem, então é ela que organiza esse novo mundo perdido que Jurassic Park oferece – não um mundo contido como o do cinema, mas um núcleo que irradiará para o planeta uma nova era de dicotomias entre o civilizado e o selvagem, entre o homem e os animais. Desde a questão da espionagem industrial, do geneticismo não como um sonho mas como uma concorrência, o enunciado das coisas em Jurassic Park é o duelo. Essa violência toma a forma do assalto sexual na fala de Malcolm porque, nesses choques de personagens e de ideias que estão na base de toda a articulação dos conflitos do livro, o que importa acima de tudo é anular o outro à força.

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

Esses confrontos de anulação, de substituição, se dão no romance em níveis bastante distintos. A menção ao pai do menino Tim é um desses casos. No filme, pouco sabemos da história dos dois irmãos, e Alan Grant se torna uma figura paterna para o garoto que acompanha seu trabalho como se houvesse ali um vácuo que caberia apenas ao paleontólogo preencher – o tal chamado da natureza que Alan Grant teimosamente insistia em não ouvir, em mais uma das muitas histórias de Spielberg sobre lares partidos e infâncias preenchidas pelo talento de fabular. Já no romance, Tim reconta como seu pai desdenhava da ciência e empurrava o filho para os esportes, o estereótipo do homem desinteressado no outro – e se Alan Grant (personagem que Crichton descreve como musculoso e imponente, com suas roupas funcionais, próximo dos acadêmicos aventureiros como Indiana Jones) há de substituir esse pai, ele precisa então se provar mais forte, mais justo. A oportunidade, para Crichton, não aparece sem ruptura.

Que Grant seja um homem vacilante no filme e, no livro, o único capaz de levar a cabo a missão de extermínio, é um bom exemplo de como os dois narradores, Spielberg e Crichton, dispõem seus heróis diante do mundo. O “estupro” da fala de Malcolm não é a única imagem sexual que aqui está a serviço de restabelecer a função do homem em um ambiente natural em desarranjo. A virilidade é o que conta no maniqueísmo que opõe vilões e mocinhos – o nerd gordo e sedentário, Nedry, e o velho demente que infantilmente se apega a seus sorvetes, Hammond, são duas figuras vilanizadas pela emasculação – e há em Jurassic Park mais de um homem selvagem (caçadores, administradores) pronto a suplantar os homens de fachada (advogados, burocratas).

jurassic park 1993, posfacio marcelo hessel omelete, livro jurassic park aleph, pipoca musical

A castração da mulher – evidente na objetificação da dra. Ellie, troféu ambulante com seus shorts curtos, personagem pela qual Crichton não esboça muito interesse, e no retrato de Lex como a criança insuportavelmente mimada no livro, crime pelo qual ela é castigada com a língua “como uma tromba de elefante” do tiranossauro rex – se sintoniza com a anulação da alteridade, para que o homem volte a se impor sobre o mundo. Nesse sentido, não seria outro o desfecho de Jurassic Park senão dizimar a ninhada dos velocirraptores, a negação da feminilidade e tudo aquilo que ela representa.

Crichton acredita num status quo social em que ainda cabe ao macho disciplinado o poder da transformação – uma lei da selva que perduraria até os dias de hoje por uma questão, acima de tudo, de ancestralidade – e, se o desarranjo do “poder sem responsabilidade”, como maldiz Malcolm, trouxe sobre nós essa derrocada, é o homem que precisa responder por ela. Enquanto todos os locais visitados no filme são irreais em sua transitoriedade, no livro cada um dos espaços é definido por suas pessoas, desde a reunião de executivos da empresa concorrente da InGen até a vila da parteira na Costa Rica. Não poderia ser mais oposta ao escapismo do filme essa disposição de Crichton de encontrar para cada um dos personagens um lugar a ocupar em seu grande esquema fatalista, mesmo que esse lugar seja, para muitos, sequer a posição de espectador privilegiado, como concede Spielberg, mas sim a mera coadjuvação.

Por Marcelo Hessel, jornalista e crítico do site Omelete.

—–

Posfácio originalmente publicado na edição brasileira do livro JURASSIC PARK, de Michael Crichton, publicada pela Editora Aleph em 2015. O conteúdo foi cedido pela própria editora com exclusividade para o blog.

Ficha Técnica

Título: Jurassic Park
Autor: Michael Crichton
Ano: 2015 (original: 1990)
Editora: Aleph
Compre: Submarino | Americanas
Skoob: adicione o livro à sua estante

Curtir e compartilhar esse post:
facebook:
twitter:
google plus:
pinterest: pinterest

Deixe seu comentário

Comentários

Comentários do Facebook