The Warriors é uma leitura desagradavelmente obrigatória

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NOTA: Embora eu tenha traduzido a obra analisada para a DarkSide® Books, nunca houve nenhum acerto ligado à divulgação, promoção ou defesa do livro. Escrevo por livre e espontânea vontade. Por razões óbvias, a qualidade da tradução não será comentada, nem nesta, nem noutras análises de livros traduzidos por mim.

O leitor moderno está mal-acostumado há mais tempo do que se imagina. Há tantas regras, gêneros e convenções narrativas em ação no mercado literário, que a maioria – não todos, ainda bem! – dos livros publicados no última década encaixa-se em alguma forma em vez de criar novos caminhos. Isso não é novidade, claro. Porém, isso não é novo. Vivemos um reflexo sentido desde o último grande boom criativo na literatura, que aconteceu com as ondas culturais dos anos 60 e 70. Exagero? Nem tanto. E a razão já foi mencionada: conformidade.

Quando Kerouac arriscava tudo para se encontrar e Ginsberg ousava sem ponderar, por exemplo, a mentalidade de mercado era outra. Tanto editores quanto autores estavam em busca de algo tão ilusório quanto belo. Era o sentido de novidade, da nova voz ponderando sobre as mesmas demandas, era a coragem sobre a comodidade. Muito disso aconteceu em nichos, claro. Mas, ainda assim, heróis, vilões e novas rotas surgiram e, felizmente, se concretizaram na literatura. Sem entrar na defesa da contracultura, fazer uma ode aos beatniks ou tentar comparar literatura independente com o mainstream, pontuar essa perspectiva tem uma função clara aqui: há 40 anos, ousar era necessário, quase obrigatório. Todo mundo queria pirar e se redescobrir, em todos os sentidos, e a literatura fez bom uso do momento.

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Mas quero falar sobre Warriors – Os Selvagens da Noite, de Sol Yurick, e qual a ligação do livro que atualizou uma demanda grega, que inspirou o filme, que virou videogame, e influencia mesmo quem não assistiu até hoje? A resposta é: ausência de conformidade. Quando Yurick escreveu o romance, seus objetivos estavam muito distantes – até mesmo opostos – do destino que aguardava a publicação.

Entretanto, sem ele imaginar, os elementos estavam todos ali, prontos para se encaixarem e o filme fez isso pela obra. Por si, The Warriors é fruto da cultura pré-pop, afinal, quando um filósofo de Nova Iorque resolve atualizar um clássico grego (Anábase), com base em anos de trabalho como assistente social, vivenciando a evolução – e violência – do mundo das gangues numa cidade cada vez mais sucateada e financeiramente segregada no pós-guerra, com a linguagem de duas décadas de separação, e vê tudo isso transformado num filme com um idioma mais avançado ainda, vemos três momentos históricos condensados num mesmo produto. É um exemplo cultural do conceito do pintor que pinta um quadro de um pintor pintando um quadro. Temos uma mesma história ecoando pelos séculos.

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Por conta disso, não existe a conformidade. A história existe por si, não como a tentativa de encontrar um reflexo da voz de determinado público-alvo (como acontece com livros de gênero, sejam eles adolescentes, femininos ou machões), mas como um exercício de análise sociocultural e visto por óticas diferentes, oferecidas pelos avanços da Humanidade, mas, sempre, mantendo-se o elemento base: a luta pela sobrevivência, analisada aqui como o retorno para casa depois de uma batalha. Mais uma prova de que, essencialmente, o ser humano continua a sofrer com as mesmas dúvidas, medos e ânsias.

Muitos de nós ainda são os mesmos jovens mercenários de Anábase, ou os membros dos Coney Island Dominators, ou qualquer versão moderna que envolva um retorno árduo ao lar (Guerra ao Terror e American Sniper são alguns dos exemplos). É difícil voltar para casa, pois a batalha – seja ela qual for; militar ou não – oferece um objetivo claro, um uso específico para nossas habilidades e ideias. Quando o conflito externo termina e o retorno se faz necessário, o sujeito é confrontado com o retorno à situação antiga (que é quase impossível por conta das transformações primordiais sofridas durante o processo) ou a criação de algo novo (igualmente assustador, afinal, novidade é incerta e incontrolável). A jornada de volta exige o verdadeiro autodescobrimento, a aceitação real daquilo que foi feito na batalha e quais seus efeitos no novo indivíduo. Quer um exemplo mais pé no chão? Voltar para casa depois do último dia num emprego – não importa se por escolha, ou não – faz isso com qualquer um. A batalha acabou, e agora?

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É disso que Warriors trata. Porém, ele não é óbvio na sua leitura e coloca o leitor a bordo dos trens, e correndo ao lado, de uma gangue de jovens negros, inseguros, imaturos, violentos e sem a menor perspectiva de uma vida decente. Eles são os vilões do mundo moderno, fazem coisas terríveis, agem como tudo que aprendemos a repudiar. Mas são reais, pulsantes, desesperados para serem ouvidos. Essa decisão é uma das mais controversas da obra, pois ela afasta os leitores modernos, acostumados aos mocinhos e mocinhas com falhas aceitáveis ou anti-heróis sedutores e quase idealistas.

É impossível gostar dos Dominadores de Coney Island. Eles são vilões situacionais e frutos do mundo injusto no qual foram criados, mas, mesmo assim, tomaram as decisões por conta própria. Eles reagem ao modo como veem o mundo: como uma ameaça constante, como um monstro pronto para dar o bote e acabar com eles. A resposta é uma só: fé nos conceitos mais familiares – neste caso, na Família composta pelos membros da gangue – e na agressividade. É a lei do mais forte em ação, pura e simples.

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Fiquei de estômago embrulhado ao traduzir o assassinato, o estupro e o final. Meu senso de leitor moderno esperava por uma redenção que nunca veio, por uma salvação na próxima página, então compreendi que isso não aconteceria, pois estava diante de um livro honesto com o objeto de análise. É algo como o nosso Cidade de Deus. A vida de Zé Pequeno é, e sempre será, aquela lá. A Fada Madrinha passa longe das narrativas de quem é oprimido sistematicamente. O momento de compreensão mudou a perspectiva sobre Warriors, pois, ali, caiu a última barreira – e esperança – de que a história do filme e do livro chegassem ao mesmo final. As conclusões são completamente díspares, e não é por menos, os personagens são tão distantes que é praticamente impossível encontrar uma relação mais aprofundada entre as duas obras.

E, nesse aspecto, o livro se mostra constantemente relevante, ao ponto que o filme serve apenas como um vulto do conteúdo apresentado. Basta revisar os dois produtos e confirmar que apenas um deles ainda se sustenta. E não quero ficar na lorota do “o livro é melhor que o filme”. Exceto pela presença de uma gangue tentando voltar para casa, livro e filme são completamente diferentes. Hinton é o grande protagonista e, embora, Lesadão e os demais membros da gangue tenham o mesmo objetivo, é dele o arco dramático, é dele o descobrimento, é dele que vem a pouca empatia presente no livro e a constatação da validade – e da inexorabilidade – do mundo habitado por aqueles garotos. Sim, garotos. No original, o objeto de estudo são gangues de pivetes jovens de mais para grandes roubos e velhos demais para sonhar como crianças. Longe de embelezar a desgraça, eles são moleques tentando descobrir o que é ser homem enquanto vivem presos no limbo da indiferença. Eles são apenas um problema para todos. E só.

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Numa das passagens mais relevantes, Hinton confronta um jogo pré-fliperama: um duelo com um delegado do Velho Oeste. Se a narrativa de Yurick é meio óbvia, e bastante direta, na maior parte do livro, neste trecho ele resolve se soltar e abre uma porta para o âmago de Hinton. É um desabafo sincero e profundo. Um catalisador para toda aquela noite insana que, no auge de sua loucura, serve para justificar mais uma noite longe da “Prisão”, nome dado às famílias biológicas, os cárceres fora da gangue.

Warriors é uma leitura desagradavelmente obrigatória ainda mais num mundo tão cheio de autores preocupados em encontrar “a voz dos adolescentes”, mesmo que ela não faça nada além de ecoar buscas efêmeras e pasteurizadas, ou odes ao individualismo mesmo que, no final, todo mundo termine pensando do mesmo jeito. Livros como este são necessários para a verdadeira formação de caráter, ao promover o confronto entre algo desagradável e nossos parâmetros de certo e errado. Livros como este são complementos necessários aos sonhos, pois apenas quando encaramos um pesadelo sem fantasmas, ou forças sobrenaturais, percebemos que aquela relação amorosa mágica, aquele emprego fantástico, aquela realização tão especial são possíveis apenas por não termos sidos criados no inferno do descaso.

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Habitualmente, tanto a literatura quanto o jornalismo – que alguns poucos ainda insistem em praticar da maneira correta – prezam pela análise, e destaque, para aqueles cuja força de vontade, talento e perseverança permitiram a virada de mesa, a saída da pobreza e a construção de algo fantástico. The Warriors é a história aqueles que nunca tiveram uma chance de sonhar de verdade, de garotos cuja maior aventura – e ousadia – foi sobreviver às dificuldades, e perigos, de atravessar Nova Iorque em meio aos fogos do 4 de Julho e ao ódio por tudo que representavam. E, por saberem que eram, cagarem para tudo isso e chamarem o mundo para a briga.

Afinal, eles faziam parte da verdadeira Família e nada poderia acabar com eles.

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Guia de Viagem

Embora não descaradamente, Os Selvagens da Noite segue a estrutura de um guia de viagens. Um passo a passo no espaço-tempo, ao levar os personagens por um passeio um tanto insólito pelas ruas de uma Nova Iorque que não existe mais. Durante o processo de tradução, retracei cada um dos trechos apontados, e pude encontrar semelhanças que ainda se mantém, como o parque onde acontece a reunião do início da história ou a maioria das estações de metrô. O ambiente mudou um pouco, mas o Bronx continua marcado pela diferença social e o pouco apelo visual.

O artifício escolhido por Yurick garante uma dinâmica interessante à obra, pois transforma a cidade – e tudo aquilo que ela, como o “mundo dos adultos”, representa. Logo, quando tudo é hostil, lugar nenhum é seguro e eles acabam sendo atraídos – ou conduzidos – a outros ambientes tão selvagens quanto a área de onde saíram. O confronto com uma gangue de latinos é particularmente interessante, pois acentua as diferenças culturais e evidencia o microcosmo habitado pelo exército informal de menores criminosos.

O Bronx, ao Norte, onde a briga inicial acontece, e Coney Island, ao Sul, onde fica a base dos Warriors, estão em extremos opostos da cidade. Logo, a peregrinação de Hinton e seus companheiros é uma descendente em direção ao inferno. Nada de escalada árdua até chegar o objetivo. Eles já passaram desse ponto e, pior, perderam, afinal, o encontro e a união propostos por Ismael – um pouco mais velho, mas igualmente perdido no limbo – caem por terra pela simples imaturidade e insegurança dos envolvidos. É como se não lhes fosse permitido nada além da natureza precária das gangues. Nada de realizações, apenas sonhos de glória que chegavam ao fim a cada novo dia, apenas para recomeçar exatamente do mesmo jeito, como jovens versões de Prometeu, destinados a sofrer sem trégua.

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Simbolismos

Mas existem tantos simbolismos assim? Sim, muito em parte por Warriors se tratar de um remake literário. A literatura básica da escola grega tem a função de retratar as facetas do ser humano e Anábase faz isso. E o próprio Yurick admite a influência, e a força arquetípica, assim como diz claramente que o livro só se tornou cult graças ao filme.

Ambas as ideias são tratadas com maestria pelo autor no texto de apresentação que, na versão original, está no final da obra e, na versão nacional, aparece no extenso início com direito a outros dois textos introdutórios e pouco interessantes, pois referem-se a outra mídia, outra experiência e outro conteúdo não aos apresentados no volume da DarkSide Books. Aliás, a capa é um primor, em conceito e acabamento. O artigo de Yurick é uma aula de filosofia, um passeio pela história de Warriors e uma ferramenta fundamental para compreender os desdobramentos da trama. Mas aí surge outra pergunta capciosa: o livro contém tudo isso ou é mero fruto da sugestão do autor e da necessidade da mídia da época, que precisava encontrar profundidade no texto “de influência grega” e tão cultuada?

A experiência gerada pela tradução, e pesquisa durante o trabalho, mostraram que sim, pois tive contato com diversos artigos, resenhas e outros conteúdos relacionados ao universo de Warriors antes de encaixar as peças remanescentes com a explanação de Sol Yurick, que li ao final – para evitar spoilers, afinal, mesmo como tradutor, o lado fã nunca desaparece! Os arquétipos estão lá, de maneira bem simplória e direta; a estrutura também, inclusive com direito a metalinguagem, afinal, Dewey lê uma história em quadrinhos que narra Anábase e, por tabela, a própria jornada dos Dominadores; e uma boa dose de crítica social. O refrão de Creatures of the Night, do Kiss, de 1982, não parava de tocar em segundo plano na minha cabeça durante a tradução. “Hiding from tomorrow, nothing left to say / Victims of the moment, future deep in doubt / Living in a whisper until we start to shout”. Paul Stanley e Sol Yurick falavam sobre a mesma coisa, pois as trevas escondem dramas tão infinitos quanto invisíveis. Sofrer, ser injustiçado ou viver sem perspectiva parecem pontos fixos na evolução humana e The Warriors é só mais uma das óticas a analisar o problema.

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O livro também funciona como rito de passagem às avessas. Pela linha de pensamento de Campbell, cada passo da jornada do herói fornece maior compreensão ao protagonista, sempre em prol do Bem maior ou da causa em questão, porém, nesse caso, o desmantelamento da Família e a ausência do velo de ouro (ou algo que cumpra a função de objetivo a ser conquistado), faz com que a única iluminação possível seja: não há escapatória.

Por esse aspecto, pode parecer que Warriors não tem razão de ser, afinal, se os personagens não tem esperança, por que acompanhamos sua jornada insana? É justamente a desesperança que motiva, pois torcemos para alguma melhoria, alguma saída, uma luz no fim do túnel. E mesmo a luz, no formato do farol do trem, falha aos protagonistas. Quando Hinton sai do túnel do Metrô, sozinho e desamparado, ele é mais homem que garoto, mais distante da Família, mais próximo do futuro desesperançoso e sem mesmo a habilidade de sonhar. Cada passo do menino-homem dentro do apartamento precoce e escuro ecoa forte pelos anos e determina seu destino.

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Personagens

Warriors seria reprovado sumariamente no Teste de Bechdel. Não há mulheres entre os protagonistas e as que aparecem, ou são namoradas submissas, encrenqueiras de plantão, vítimas de estupro ou bêbadas lamuriosas. Difícil saber se a culpa recai sobre o autor, a realidade da época em questão ou dos dois, mas o livro trata sobre proto-homens, sobre sujeitos que imaginam o que é ser um macho da espécie e colocam esses devaneios corrompidos em prática da pior maneira possível, cada um à sua maneira.

É como se todos os personagens principais fossem facetas de um mesmo monstro. Lesadão é a agressão pura, Hinton é o líder nato, Dewey é o artista, e Junior é a eterna criança. Esta desconstrução do homem adulto e violento (mas não aquele que escolhe ser brutal) é interessante, pois é possível ver suas raízes e pontos cruciais. Medir o maior pênis, saber quem é o mais forte, definir a liderança no berro, dominar as mulheres, aterrorizar os demais cidadãos e tantas outras atrocidades são os instrumentos da autodestruição à disposição dos Dominadores. E eles castigam tudo e todos em seu caminho, algo que lembra minha juventude a caminho de jogos de futebol no Pacaembu, em São Paulo, quando via pequenos grupos agressivos vandalizando carros, casas, comércios e qualquer um que não caminhasse na mesma direção – ou com o mesmo objetivo.

Socialmente, somos treinados a imaginar que o melhor sempre vai acontecer e que, mesmo contra todos os indícios, sempre há uma chance redenção. Para os Dominadores, a estagnação social e a proteção da noite é tudo que existe.

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Ficha Técnica

Título: Warriors – Os Selvagens da Noite
Autor: Sol Yurick
Editora: DarkSide Books
Páginas: 256
Tradutor: Fábio M. Barreto
Adicione: Goodreads
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